O PLANTÃO

“Opção não é?”. O que oferece? oferece trabalhar oito horas por dia e ganhar cento e doze dólares por mês. Qual é a opção que ele tem?
Se conseguir o emprego… Se eu me encaixo no tráfico ganho trezentos e vinte por semana. É negócio? É negócio pra qualquer um
Só não é negócio para quem nunca passou fome. para o miserável é negócio.Aí o pessoal vai fazer fila pra querer trabalhar,”
“Não é opção é emprego”
                                                      Hélio luz (Ex Deputado estadual e delegado aposentado)

 

Após assistir seu desenho animado preferido, em sua nova TV “fininha”, comendo um pacote de fofura (esse é o seu jantar). Gabriel procura saber da hora. Ele não pode chegar atrasado ao seu posto. Seu patrão é exigente, e pune de forma exemplar aqueles que se atrasam.

No lugar onde moro, agora existem novas modalidades de trabalho.  Os “meninos”, agora, já estão estabelecidos e arregimentam novos funcionários.  Essa” empresa” é tão organizada que tem, inclusive, plano de carreira. Eles não têm problema com o emprego de mão de obra infantil. Aliás,  esse é o seu público alvo. Gabriel que recentemente completou treze anos, em menos de três meses já foi promovido. Foi de “atividade” (uma espécie de vigia, que de posse de um rádio transmissor avisa se a polícia ou inimigos se aproximam), agora é “vapor” (responsável por vender a mercadoria). E logo a tranquilidade de Gabriel é interrompida.

Coé Prestação!  Prestação é teu plantão maluco, vambora!

Dentro do seu castelo de madeira, Gabriel, distribui entre seus dois irmãos o que sobrou do pacote de biscoito. Essa provavelmente será a única refeição das crianças. Sua mãe há essa hora, deve estar na porta de alguma birosca do morro. Gabriel então responde.

Já vou, pera aí maluco!

Tu sabe que o patrão num gosta de atraso

To saindo, vô pegar meu boné.

Depois de colocar seu boné, beija os irmãos, e sai porta afora. Pega então com Mortadela, o produto que vai vender durante a madrugada.

Confere direitim, pá nun fica de caô.

Tá certo doido, se liga na minha não, ta suave.

Então corre que o teu ponto é longe, se adianta logo maluco.

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Agora, de posse do material acelera o passo. A chuva fina dificulta a visão, mas não é o bastante para minar sua vontade de chegar ao seu destino. Seu posto fica em uma área complicada. É muito próximo da fronteira imaginária da facção rival, não é incomum acontecer algum confronto. Porem, ele confia no seu patrão, acredita que se mostrar um bom serviço, em breve terá outra promoção. Quem sabe, até ser soldado, portar um bico (Fuzil) e tirar onda no morro. Chegar ao baile de “patrão”, fuzil trançado, uma moto, pegar várias novinha. Assim quem sabe, fazer obra em casa, comprar uma cama bem grande. Parar de dividir o chão com seus irmãos, a friagem sempre deixava um doente. Ratos e baratas acabavam sempre entre as cobertas. Esses pensamentos ajudavam a acreditar que valia a pena o risco que corria. Perguntava-se por onde andaria seu pai, não podia perguntar a sua mãe. Da ultima vez que perguntou sobre seu coroa, sua mãe lhe retribuiu a pergunta, com um tapa no rosto.com o a lembrança do tapa, ele chega ao seu posto, e sua chegada é saudada pelo amigo que iria substituir.

Fala aí Prestação, chegou na hora neguim, hoje o movimento tá fraco.

Fala tu Ratim, mete o pé que agora o bagulho vai ficar bom, eu tenho sorte! Vai brotar viciado do chão, hoje eu vou fazer um dinheiro.

Que nada neguim, tem viciado não, segura tua onda hein, plantão na chuva é foda. Fica esperto!

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Ratinho se afasta, e some no meio da escuridão. Apesar do tempo, aos poucos um ou outro viciado vão aparecendo, enquanto vai cumprindo seu plantão vai observando os moradores. Muitos ainda estão chegando do trabalho, repara no semblante abatido de alguns. Senhoras de idade arrastam pesadas bolsas de compra, alguns homens alcoolizados vão cambaleando pela rua, muitas faces de um mesmo lugar. A chuva continua, um homem se aproxima e lhe entrega um panfleto e diz:

-Jesus te ama meu filho, sai dessa vida, vai lá na minha igreja.

Vou sim tio, faz uma oração La por mim.

-Sempre oro pela sua vida Gabriel, fica na paz.

O crente também vai seguindo seu caminho. Prestação vai acompanhando o caminhar do homem, quando é surpreendido.

Coé neguim, tem bagulho aí?

Perguntou um garoto franzino, que devia ter um pouco mais de 16 anos.

Claro que tem! Qué quanto?

Me dá dois de dez!

Prestação abaixa para abrir a mochila e pegar o produto, de repente sente um frio na espinha e um estampido corta o silêncio. Prestação cai, leva as mãos até a barriga, e o sangue jorra ensopando sua camisa. Deitado no chão vê agora,o cara com uma pistola na mão pegar sua mochila, e sair apressado. O sangue não para de jorrar, pensa na sua mãe, onde ela está? Vai perdendo os sentidos, já não consegue abrir os olhos. Sente alguém pegar sua mão, pela voz ele identifica o crente, e pede:

Ora por mim, pede pra Deus me curar, não quero morrer, ora por mim.

Segurando a mão de Gabriel, o crente vai recitando um salmo da bíblia, em meio às palavras do crente, e sob os olhares dos curiosos que vão chegando, a vida de Gabriel vai se esvaindo, no chão, o sangue vai se misturando com a chuva, a voz do crente vai ficando distante. Prestação que nasceu Gabriel agora relaxa e vai ouvindo as palavras do crente que ainda segura sua mão, “Levanto meus olhos para o monte e pergunto: De onde vem o meu socorro?”. Hoje, pela manhã, no caminho do trabalho encontro o dono do bar, ele estava recolhendo doações para ajudar no enterro do Gabriel. Depois de ouvir rapidamente do ocorrido faço minha contribuição. Passo pelo local do ocorrido, no ponto, o chão ainda marcado com o sangue de Gabriel, agora tem outro menino.

HELP ME

Obs: Todas as crônicas postadas neste blog são fatos reais, nos quais eu presenciei, ou provém de relatos fornecidos por moradores. Também, algumas vezes, até publicados nos veículos de comunicação.Os nomes dos personagens são sempre fictícios e as imagens ilustrativas são obtidas na internet.

Entrevista do ex Delegado Hélio Luz

A ODISSÉIA DE RITA.

 

” O sertanejo é, antes de tudo, um forte.”

Euclides da Cunha

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Nascida na cidade de Soledade, no interior do estado da Paraíba, Rita de Cássia da Anunciação. Veio para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor. Seguindo os passos de sua irmã que anos antes havia feito o mesmo.  Chegou à rodoviária com uma mala, com sonhos, alguns trocados e um endereço. Trazia junto, no seu interior, a vontade de trabalhar. Ter casa, família e filhos, era a sua razão de encarar tamanha odisseia. Na rodoviária após quatro dias de viagem, perguntou a todos que encontrava, como chegar ao endereço escrito em um pedaço de papel. Depois de muito perguntar uma alma caridosa a colocou no ônibus que a deixaria em seu destino. No lugar onde moro, Rita, cansada subiu o morro até a casa anotada no pedaço de papel. Por sorte,  as pessoas que ali moravam eram gente de bom coração.  Ajudaram- na a conseguir seu primeiro emprego de diarista, em uma casa na zona sul. Com muito esforço e pouco estudo,  conseguiu comprar sua primeira casa (um barraquinho de tábua, mas, com que quintal) logo,  conheceu seu primeiro namorado carioca.  E de um romance  rápido e forte como as torrenciais chuvas do verão do Rio,  ele terminou. Todavia, o romance rápido como as chuvas de verão deixou para trás seus efeitos, um filho. Como o famoso dito popular “Quando a barriga cresce, o amor desaparece”  Rita, agora, mãe solteira deu a luz a Rodrigo da Anunciação. Na certidão, o estigma, “pai desconhecido”. Rita tem agora mais um motivo para lutar. Juntando dinheiro comprou material de construção, chamou um pedreiro do lugar para construir seu pequeno castelo. Wilson um rosto conhecido do lugar, fez além da meia-água (casas de apenas um quarto, sala, cozinha e banheiro) um abrigo no coração de Rita.  Assim uma família teve início,  novos filhos, novos desafios.  Porém,  não estava mais sozinha, havia construído algo que fazia parte do seu sonho, uma família.

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Com o passar do tempo, as coisas vão sofrendo transformações. Rodrigo, agora um adolescente, bom menino, cuida dos irmãos mais novos enquanto seus pais trabalham. Bom aluno, sempre a procurando por cursos para melhorar as suas oportunidades no mercado de trabalho, e assim, ajudar os pais. Como falei,  as transformações estão em andamento. E o lugar também,  está passando por mudanças. O asfalto e esgoto chegaram ao morro, junto dele,  novos personagens. Personagens estes com um poder de mudança, que está fora da compreensão de alguns, e causa espanto, temor, desconforto e medo. Junto com esse medo, a curiosidade de alguns, principalmente dos mais jovens. Um novo poder, agora,  domina o lugar.  Esse poder causa certo fascínio, contaminando mais facilmente, crianças e adolescentes. Alguns amigos de Rodrigo agora tem novos amigos. Que pouco a pouco, vão se envolvendo sem perceber, em uma espécie teia, que vai dragando as mentes menos atentas as armadilhas deste jogo. Aos poucos, quase sem querer, Rodrigo já tem novos amigos,  e agora é chamado pela alcunha de “Duplex”.

Coé Duplex!  Brota aí no portão.
Gritava da rua, um de seus antigos amigos, agora muito mais enroscado com os novos amigos. Os meninos.
Chega aí mano, fica aqui cum nós, só vive trancado em casa.  Tu é prisioneiro ou maluco?

Se liga neguim,  a mãe do Duplex num que ele cum nós não!  Nós num é companhia pra ele não.

Dizia Ricardinho, um amigo antigo de Rodrigo.

Rodrigo,  que já escutara o sermão diário de sua mãe, hoje decidiu fazer diferente. Foi para rua. Querendo ou não, o fato de estar no seu portão, já o comprometia. O ponto dos “meninos” fica em frente ao seu portão. Aos olhos de quem passava Rodrigo agora já estava envolvido. E essa “amizade,” já causava brigas entre Rita e Wilson.

-Já te avisei Rita, tem que botar esse garoto para trabalhar, tirar ele desse morro… “mente vazia é oficina do Diabo”. Ele já fez dezoito anos!
-Estou procurando homem de Deus!  Não está fácil arrumar emprego sem ter experiência.

-Estou avisando,  o morro todo só fala das amizades do Rodrigo. “quem se mistura com porco, farelo come.”

As brigas constantes com o marido, só pioravam o desespero de Rita. Enquanto Rodrigo, agora Duplex,  não entendia a preocupação dos pais. Afinal, os “meninos” são seus amigos.  Em um dia como outro qualquer após subir e o morro de moto (coisa que aprendeu com os meninos), Ricardinho lhe faz um ma proposta.

Coé Duplex bora buscar uma moto pra nós?

-Como assim, buscar uma moto?

Perguntou Rodrigo, com um tom de espanto.

Ué? Tu num tá gostano de tirar onda no morro de moto? Então, vamo puxar umas na pista. Uma fica pra tu e a outra nós vende pros parceiro. Vamo ficar de patrão ta ligando? As novinha perde pa nós de moto.

-Eu tenho medo Ricardinho, e se a policia pegar? Sabe que eles não perdoam 157 (artigo do código penal, para roubo a mão armada). E tem mais,como vou explicar pra minha mãe uma moto? Aonde vamos arrumar um ferro?

-Se liga doidão, o ferro eu pego na boca, o Barbantim é meu parceiro, já falou que se precisar ele deixa na minha posse, a moto tu guarda no meu quintal, ta tudo no esquema, tá com medim?

Após o convite, feito de forma tão direta diante dos amigos e dos “meninos”, Rodrigo não conseguiu recusar, ou resistir. Naquele momento, ao aceitar o convite, o Rodrigo filho da Rita desaparece, em seu lugar, nasce de vez, Duplex.

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Ricardinho chega com uma moto, na cintura, uma pistola automática não conseguia permanecer escondida. Duplex sobe na garupa da moto, e juntos descem o morro, agora é tudo ou nada.

Depois de rodar por alguns minutos em uma estrada muito conhecida por eles, sua busca por uma vítima teve sucesso. um rapaz de uns vinte cinco anos, seria a bola da vez,duplex tremia. A mistura de nervosismo e medo, a adrenalina correndo no seu corpo, uma mistura muito perigosa estava pronta. Dois moleques nervosos,uma arma e nada a perder.

Perdeu!Perdeu! Desce da moto otário, não treme não se não te mato playboy!

Gritou Ricardinho com a arma apontada para o rapaz.

O Rapaz, sem entender direito o que dois garotos franzinos, estão fazendo com uma pistola na mão no meio de uma estrada tão movimentada, desce da moto. Rapidamente Duplex assume a direção da moto do rapaz. Ricardinho acelera sua moto e sai na frente,logo atrás, muito atrapalhado com uma moto enorme Duplex tenta acompanhar seu parceiro.Porém logo em seguida, surge um carro da polícia com a sirene ligada,Duplex se desespera e cai com moto e tudo.Quando abre os olhos,e começa a recuperar aos poucos a noção dos acontecimentos,é surpreendido por uma bota preta que apertava o seu peito,na sua testa,agora, um bico de um fuzil fazia seu sangue gelar.

-Vai morrer moleque, você gosta de roubar? No meu plantão ladrão não se cria. Acredita em Deus? Começa a rezar maluco, vou promover o teu encontro com o criador.

Dizia um dos policiais, enquanto  outro tirava a moto do meio da rua, neste meio tempo, chega à cena, o rapaz dono da moto.

-É esse moleque aqui que te roubou?

Perguntou o policial.

-Foi sim, mas esse ai não tinha arma.

O som da arma sendo engatilhada trouxe a sua mente a imagem de sua mãe, ele então começou a chorar desesperadamente, e a pedir pra não morrer.

Num me mata não doutor, num vou fazer mais não, foi à primeira vez, me libera nun faço mais não.

Mas o choro de Duplex não comoveu o PM. Sua sentença já havia sido determinada. Com o pé no seu peito e o bico do fuzil na sua cabeça, diante dele estava o representante do estado. Juiz, júri e executor reunidos em uma única pessoa. Porém o rapaz percebendo o que estava por acontecer interviu.

-O que você vai fazer? Eu o quero na delegacia. Não quero o sangue dele na minha consciência. Já recuperei a moto,quero fazer o boletim de ocorrência.

-Mas ele é ladrão, se eu levar pra delegacia vai me dar muito trabalho, depois ele volta pra rua pra roubar outra vez!

Contestou o policial. Mas o rapaz estava irredutível e foram todos juntos pra delegacia, no caminho, Duplex algemado foi recebendo o tratamento dado a quase todos que entram algemados, no “Camburão”.

No morro já era madrugada. Rita preocupada com Rodrigo decide ir atrás do filho. vai de esquina em esquina perguntando a todos que encontra até que um “menino” lhe diz

Aí tia pergunta pro Ricardinho que ele deve saber.

Ela agradece e vai até a casa do Ricardo, chegando lá, após muito gritar Ricardo chega ao portão.

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Fala tia Rita.

-Cadê o Rodrigo? Onde tu levou meu filho? Cadê o meu filho Ricardo?

Do outro lado da rua um dos “meninos” gritou.

Koé maluco responde logo pa tia. Fala pa ela que tu levou o Duplex pra robar na pista. Fala logo que o muleque rodou.

Ricardo então falou.

-foi mau tia, mas o Rodrigo deve ta lá na 39 DP.

Desesperada, Rita parte para delegacia. Quando chega já está amanhecendo, depois de muito insistir, consegue a informação que precisava.

-Bom dia senhora, seu filho foi preso em flagrante e vai ser transferido para o presídio, acho melhor à senhora conseguir um advogado.

Rita, sem poder nem ver o filho, volta pra casa.

E começa outra odisseia. libertar Rodrigo da prisão. Vendeu uma parte do seu terreno, pegou empréstimo no banco, raspou todas as economias que tinha. Conseguiu um advogado, que aceitou pegar o caso e dividiu seus honorários em parcelas. Depois de um mês conseguiu pela primeira vez visitar seu filho. Bem mais magro Rodrigo chorou nos braços da mãe, e fez muitas promessas de que não iria repetir o mesmo erro. Após nove meses preso, no julgamento, a vítima não apareceu. Rodrigo saiu do presídio, e já em casa, permaneceu quieto por umas semanas, quando andava pelo morro era saudado pelos “meninos”. Em um dos muros do lugar, podia ver escrito “liberdade pro mano Duplex”, isso acariciava o seu ego, algo acontecera com ele no presídio, já não era o mesmo menino.

Hoje eu cheguei tarde em casa, devido ao horário, decidi fazer um caminho diferente. Queria chegar logo em casa, estava distraído em meus pensamentos, quando sou cumprimentado.

-Boa noite, caminho diferente hoje?

-Boa noite meu filho! Estou com pressa, fica na paz.

Atrás de um poste, no escuro, Duplex segurava um Fuzil.

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Obs: Todas as crônicas postadas neste blog são fatos reais, nos quais eu presenciei, ou provém de relatos fornecidos por moradores. Também, algumas vezes, até publicados nos veículos de comunicação.Os nomes dos personagens são sempre fictícios e as imagens ilustrativas são obtidas na internet.

 

EU QUERO VER GOL!

 

“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola.”

Nelson Rodrigues

 

Domingo, dia de folga e descanso para quase todos; estamos no Brasil, o tal “pais do futebol”. Em todas as cidades do pais, temos espalhados campos de futebol, esporte tão popular que encanta ricos, pobres e miseráveis. Todo brasileiro é um pouco técnico de futebol, e a famosa “pelada” é, praticamente, uma unanimidade entre os boleiros de fim de semana. Isso não é diferente  por aqui,  no lugar onde moro a pelada de domingo já é tradição. Quando cheguei aqui já tinha sido construída uma quadra de concreto, obra de algum político em busca de votos. Essa quadra era a única diversão dos moradores. Crianças e adultos se aglomeram na busca por vaga nos times e essa atividade dura o domingo inteiro, (gerando até brigas nos casais).

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Minha  pelada  é coisa séria amor, o time precisa do craque aqui.
Dizia Sandro, a sua, então, recém-esposa.

Mas você exagera, passa o domingo todo no campo, quando volta para casa já é noite!
Retrucava Verinha, quase sempre coberta de razão.
Sandro é um rapaz bem afeiçoado, alto, loiro de olhos verdes, bem diferente do estereótipo do local onde a maioria tem, por definição, uma pele mais escura – negra, para ser mais preciso, ou nordestino. Mas Sandro não é só um “rosto bonito”, é um garoto esforçado, trabalha e faz faculdade a noite, já tem sua casa própria. Evangélico convicto, Sandro é o genro dos sonhos das senhoras do local, um bom garoto.
Neste domingo não foi diferente, logo cedo, no portão,  à turma já fazia uma algazarra chamando o Rapaz.

Vamos pro campo, hoje é dia de campeonato. Não demora!
Gritavam os amigos de pelada ao portão. Sandro sai empolgado, nem ouve os gritos da esposa.
Já no campo, os times divididos, começa a brincadeira.  Aos poucos mais pessoas vão chegando para assistir (eu que estava confortável, já fui perdendo espaço) junto com o pessoal, também começaram a chegar novas pessoas no lugar. Chamados pelos moradores de “meninos”. Esses meninos são fruto da Diáspora (espalhamento, dispersão) advinda das UPPs, em busca de novos territórios, acabaram por transformar um lugar que antes era desconhecido em um dos mais famosos dos programas policiais. Um deles, de posse, agora, da bola anunciava:
Hoje vai ter campeonato, morro contra morro.
Apesar te todos os “meninos” serem do mesmo “partido” (entenda partido, neste sentido por facção), o futebol gera, naturalmente, certo grau de rivalidade entre todos.  Muitos “meninos” foram chegando, trazendo também suas “ferramentas” E logo, o que era um momento de descontração, pouco a pouco foi ficando  esquisito e, de certo modo, desconfortável.  Na hora da divisão dos times o mais velho dos meninos bradou:

-O bonitão é do meu time hein.
Sandro, em uma mistura de preocupação e incredulidade perguntou.

-Quem?

você mermo lorim, ou tem outro cara aqui que parece galã de novela?
Respondeu aquele que parecia ser o chefe do lugar.
Os times foram divididos em cinco jogadores, em uma espécie de mata-mata, onde o time que perdia no tempo normal, deixava a competição. Em caso de empate, seria resolvido nos pênaltis. Time por time foram se enfrentando, e as vitórias eram comemoradas com saraivadas de tiros para o céu. No final, o grande grupo foi reduzido a quatro times, dentre eles o do local, no qual Sandro já se destacava como artilheiro, enchendo de alegria o mais velho. Em poucos estantes o assunto correu o lugar, o que fez com que, quem estivesse nas barracas, e botecos espalhados pelo morro, corressem para ver o resultado do campeonato. Neste momento a final já estava definida, graças à habilidade de Sandro, e um pouco de sorte do próprio time. Fato comemorado com farta distribuição de cerveja e refrigerante para todos, junto é claro de tiros para comemorar o fato Histórico.

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“Os Meninos”

 

-Esse troféu e nosso não vamo da mole!  Quero só vê bunitão se tu é craque mermo!

Gritava o mais velho(que não aparentava, ter trinta anos) para incentivar o time, e para desespero de Sandro; que já sentia o peso da possível derrota nos ombros. O outro time faz o primeiro gol, gritos e mais tiros pra comemorar. O que não agradou nada o mais velho que de cara feia chutou forte no canto direito pra empatar a partida. O tempo passava rápido, e um dos meninos do time adversário, que tinha a alcunha de “Pulmão” em um drible de gênio deixou o goleiro no chão e fez o gol mais bonito até o momento. O mais velho muito revoltado e preocupado com a possibilidade de perder, gritava.

-vambora! Quero esse troféu, cume que é Bunitão vai faze gol não rapá?

O desespero de Sandro já era grande. Para piorar a multidão ao redor da quadra começa a gritar.

Hu é o Bunitão! hu  hu è o Bunitão!

Os minutos escorriam, de uma bola dividida surge à oportunidade, por sorte ou destino, sobra para Sandro que deixa tudo igual. A galera vibra e o povo volta a gritar.

Hu é o Bunitão! hu hu é o bunitão!

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E bem no meio da comemoração, acaba o tempo da partida. Temos um empate, vamos aos pênaltis. Todos posicionados, Sandro tirando logo o seu da reta, pediu para ser o primeiro a bater. Bola posicionada, atenção total e bateu, bem no canto sem chance para o goleiro. Sua estrela havia brilhado um golaço. Depois de Sandro os jogadores foram se alternado nos pênaltis, depois de um lindo gol do mano Pulmão (que também foi muito ovacionado) ficou tudo igual. Sobrou para os goleiros, e naquele momento todos estavam em silencio, o povo que assistia prendia o fôlego. O goleiro do time local bateu e fez, era o momento decisivo. O goleiro posicionado, concentração, e é a vez do adversário. Bateu chutou e o goleiro defendeu. O povo invadiu a quadra, “os meninos” com suas ferramentas a tira colo, gritavam junto à multidão.

Hu é o Bunitão! Hu hu é o bunitão!

Sandro teve seu momento de herói, seu dia de fama, quando deu por si, se viu envolto por um pessoal bem diferente dos amigos de costume. Agora Sandro era Bunitão, o artilheiro do primeiro campeonato dos “Meninos” o Bunitão do morro. Apesar de ser sempre chamado para as peladas de domingo, Sandro, não joga mais sua pelada na quadra do morro, guardou seu talento, hoje só joga pelada em uma quadra de grama sintética com o pessoal da igreja. O local vai deixar de apreciar os dribles do Sandro, que virou Bunitão e celebridade sem Querer. Coisas de Futebol

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Diário da Trincheira

DIA DE FRANCISCO

 

Em mais um dia no lugar onde moro, hoje venho trazer neste pequeno espaço,  outro personagem desta intrincada peça. Dependendo do dia o tema desta peça pode variar de humor a quase sempre, tragédia. Hoje é dia de Francisco, ou simplesmente Chico, como é chamado por aqui, Chico tem três filhos. em  idades diferentes cinco, seis, e dez anos de idade. Casado, sua esposa é uma evangélica fervorosa e frequenta uma das igrejas da comunidade. Chico não tem emprego fixo, porém faz da “reciclagem” o seu ganha pão. Por aqui todos o conhecem, morador antigo do lugar ele transita por todas as ruas becos e vielas. Aqui nos dias atuais diferente de outros lugares da cidade,  o lixo não é colocado na porta para que a coleta possa levar, mas em pontos específicos. Lá amontoam-se  as sacolas plásticas para serem retiradas pelo caminhão do lixo, (que ultimamente anda sempre com pressa) e são destas montanhas que se formam pelo lugar, que Chico garimpa dia após dia o material para garantir o seu pão, o sustento de sua família. Sempre feliz. o que pode causar estranheza em alguns. Esse homem vive daquilo que sobrou dos outros, que já tem pouco. Com sua inseparável carroça, também conhecida como burrinho sem rabo,ele vai,  de monte em monte, de lixo em lixo ele vai retirando o que se pode vender no ferro velho. Esse é Chico, sempre cantando. Ele já faz parte do meu cotidiano, quando na correria da manhã  me preparo para a labuta diária, enquanto as crianças e minha esposa estão agitadas em meio aos preparativos para ir à escola.

Quase Sempre encontramos o Chico nestas manhãs,  já é costume, por quase todos ele é cumprimentado, e meus filhos fazem parte desta maioria.

-Bom dia Chico

Gritam os meninos a plenos pulmões

-Bom dia molecada, vão comer merenda né! Come a merenda mais respeita a professora.

Bom mesmo é ser criança diz Francisco.

 

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E assim os dias vão seguindo  como uma roda gigante. Certo dia como outro qualquer nada fugia do comum. A dificuldade de acordar, a correria das crianças para se arrumar a preocupação em não perder o horário,  e como de costume,  encontramos o Chico. Após os comprimentos diários seguimos. A escola das crianças fica no meu caminho para o trabalho coisa de quinze minutos de caminhada, é no meio desta caminhada que as coisas começam a ficar  “estranhas”. Os “garotos” estão agitados e até alguns pontos onde é comum a presença destes personagens encontra-se vazio,  o que é estranho, diga-se de passagem. Apertamos o passo, pois já imagino o motivo de tamanha aflição entre os “garotos” só pode ter um nome… Polícia.  Aperto ainda mais o passo as crianças reclamam de súbita pressa e começam a questionar:

-Pai por que estamos correndo?

Pergunta o mais novo, e logo sua mãe retruca…

-Ninguém está correndo menino, só estamos atrasados.

E por sua vez o mais velho responde.

-Então todos estão atrasados?  Todos estão correndo!

-Eu já falei que não estou correndo, só não quero chegar atrasado.

Respondi de maneira firme ao mais velho que é o questionador da família.

Então começa a se ouvir de longe um som forte de algo pesado se movendo devagar, quase se arrastando, não consigo ver o que está causando o tal barulho, mais posso garantir é inesquecível.

Um estampido corta o ar, em estantes a agitação. O que antes era uma marcha acelerada vira rapidamente uma correria por um busca comum, por todos que estavam na rua, outro estampido desta vez mais perto. Meus filhos assustados, minha esposa nervosa e logo em seguida o que se ouve são saraivadas de tiros, muitos tiros em meio aos sons gritos, gemidos, orações e desespero o som do motor de alguma coisa que parecia ser um caminhão. Eu avisto um Blindado da polícia militar, vulgarmente conhecido como caveirão. A visão de um veículo que mais se assemelha a um tanque de guerra é perturbador, mas logo explica o  motivo da inquietação dos “garotos”. A preocupação agora é encontrar abrigo. Algum lugar para se proteger,  se abrigar, mas todos na rua procuram o mesmo, seguro firme as mãos das crianças e nos abrigamos em uma espécie de lan House junto de outros que ali estavam,  já podia avistar a escola, no abrigo as orações o choro das crianças,  o desespero dos pais e em seguida se ouve mais  tiros me atrevo a colocar a cabeça para fora do lugar e o que vejo é algo ainda mais preocupante. Garotos armados atiravam na direção do carro blindado que da forma que podia respondia os tiros recebidos com mais tiros, não sei por quanto tempo observei, mas foi o suficiente para voltar às pressas com o pescoço, sabe como é o Rio de Janeiro é o único lugar no mundo onde existe o fenômeno chamado “bala perdida”.

Por alguns estantes o tiroteio continuou e o blindado passa bem em frente de onde estávamos,  enquanto ele se distanciava, também foi diminuindo a quantidade de estampidos. E foi em um rompante de coragem ou desespero que corri com a minha família para o portão da escola, deu certo,  após adentrar ao pátio e me proteger por detrás dos muros do colégio, pude respirar, minha atitude foi seguida por outros. Ali ficamos por alguns minutos, até as coisas ficarem mais calmas. Depois de ter certeza que tudo estava bem, segui meu caminho para o trabalho para mais um dia, um par de horas mais tarde meu celular tocou, era minha esposa, com a voz estranha, um pouco embargada. Do outro lado da cidade através desta invenção recente chamada celular,  chega ao meu conhecimento uma triste informação. Bem no meio da rua, próximo a uma montanha de lixo, sobre o burrinho sem rabo jazia agora, o corpo sem vida de Francisco, fruto de outra  invenção contemporânea.  Chico foi atingido por uma “bala perdida”. O lugar vai ficar um pouco mais triste, a alegria de Francisco não estará mais entre nós. Mais uma família desfeita por uma guerra que nunca terá vencedores.  Chico nos deixou no mesmo dia em que veio ao mundo,  sem festa, sem bolo.

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Obs.: Todas as crônicas postadas neste blog são fatos reais, nos quais eu presenciei ou provém de relatos fornecidos por moradores. Também algumas vezes até publicados nos veículos de comunicação.Os nomes dos personagens são sempre fictícios.